Ary Pararraios para o 'Correio Braziliense' - Brasília, quarta-feira, 16 de maio de 1979.
Não há como não ficar gostando da obra e do artista Claudio Medeiros que cativa pelos dois lados. Uma obra cuja beleza indescritível Leva também a reflexão júdica e um ser vivíssimo que retraram uma mente em contínua ebulição. Uma franqueza fora do comum em verborragias e pseudoposições filosóficas. Tudo em cima e tudo na cara.
Hoje as 21:00 horas vernissage da sua primeira exposição em Brasília. Ela vai até dia 30 maio 1979. Quem perder, perde, além de sentir sua arte incrível a chance de conhecer um grande sujeito, um ser humano destamanho!
Inicialmente um material simples. Barbante e chá. Isso mesmo! Chá. Chá comum. É ele que - usado em maior ou menor quantidade - dá a grande diversividade de côres que aparecem no trabalho de Cláudio Medeiros. Em suas mãos também o barbante toma formas e se soma às cores do chá para resultar num trabalho onde se confunde o talento e a técnica apurada em 8 anos de pesquisa de material na mão. Muita cuca, muitos dedos. Madeira, arame e ferro de construção são os materiais nos quais se suportam suas composições.
Dito assim parece ser tudo muito simples. Se essa simplicidade não escondesse uma obra plástica incomparável e uma técnica artesanal onde o conhecimento teórico fica a milhas de distância. E é por isso mesmo que Cláudio tem de aplicar de 30 a 60 dias em qualquer um de seus painéis, tapetes ou tecelagens, como queira se chamar. Desde o macramé até as maneiras mais populares de se tecer estão presentes em cada obra.
Tranças, franjas aplicadas à madeira envelhecida perfazem painéis cujas côres pastéis e cuja simplicidade contrastam com o temperamento inquieto e até agitado do artista. Na cara, a insatisfação dos que estão sempre à procura. Na obra, um trabalha plenamente realizado, acabado, detalhado, completo. Impecável! O mais perfeito domínio do que se propõe a fazer.
Azul com azul ou rosa com rosa. Tonalidades diferentes da mesma cor lhe dão uma discrição que ajuda a acentuar a segurança do artesão.
Um pêndulo de carrilhão, uma bolsa, uma tanga. Peças decorativas ou de indumentária confeccionadas com o mesmo apuro e a mesma dedicação.
Apesar do nome, injustamente pouco conhecido, as peças elaboradas pelo artista são conhecidas de todos. Estão nas roupas fantásticas usadas por Ney Matogrosso em seus shows, por Alaíde Costa ou pelo Balé Stagium de São Paulo:
"Os adereços usados pelo Stagium no balé 'Quarup', ou objetos usados pelos Dzi Croquetes do espetáculo que foi p'ra França, a dança - luta dos andróginos na cena final".
Claudio fala sobre sua exposição em Brasília, a primeira individual e sobre como começou sua motivação pela tapeçaria.
"É curioso. Comecei aprendendo artesanato em fios com o próprio Ney Matogrosso. Iniciamos juntos um atelier e comecei a trabalhar. Fui acrescentando coisas e adquirindo maior traquejo, mais experiência e pesquisando muito. Começou com as roupas para os Secos & Molhados e depois vieram sugestões encomendadas e eu fui aperfeiçoando".
"Mais curioso ainda foi a transação de Brasília... Não sei porque motivo eu tinha pensado e fazia fé em fazer aqui a minha primeira individual. Foi um negócio meio esotérico pelo conhecimento das profecias de Dom Bosco, sei lá... a verdade é que de-repente a Galeria Itaú me convidou para expor em alguns lugares onde ela funciona. E acontece que veio a ser justamente Brasília. Não conhecia a cidade nem tinha maiores informações sobre as possibilidades de mercado ou galerias por aqui. De-repente estou aqui".
Individual é a primeira. Antes Cláudio só havia feito uma dupla com o tapeceiro Albertini no Center 3 em São Paulo. Também havia representado o Brasil em tapeçaria na Bienal Paulista. "Pesquisa em Cima do Avesso" é o nome que deu a uma das suas obras que embora exposta não está à venda. Emprestada por Ney para esta mostra ela se apresenta pendurada de maneira a ser vista pelas duas faces. Em mostra anterior ele, propositadamente, expunha alguns painéis pelo avesso de forma a provocar uma reflexão em cima da outra face.
"Possibilita à pessoa uma proposta de detectar o lado direito, imaginar. Acho que meu trabalho tem muita coisa de mágico. Uma coisa lúdica e mágica. Provoca luzes e sombras que se compõe com formas e côres. Instigam a imaginação, ao reflexo mental".
"Comuns Dependuradas", um varal na Trienal da Tapeçaria no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, apresentava uma proposta em cujo texto o artista é apresentado:
"Na qualidade as artes visuais em geral e a tapeçaria em particular vêm sendo encaradas quase que somente como bem de consumo e têm valorizados seus aspectos de decoração, de valor, de 'status' e mesmo de investimento".
Nessa medida, esse tipo de arte só é acessível às classes privilegiadas tanto em termos de compra, quanto em termo de apreciação, pois seu trajeto é curto; do atelier do artista passando rapidamente por galerias para se fixar em termos definitivos em residências de classe abastada. São vistas assim quase que exclusivamente por uma pequena elite.
Além disso, de maneira mais marcante com a tapeçaria, ocorre a perda de vínculo com as atividades cotidianas das pessoas. A arte é apreciada apenas em situação específica e programada para essa finalidade.
"Comuns Dependuradas' é uma recriação dos varais domésticos presentes largamente na realidade brasileira. Compõe-se de peças de fibra tecida artesanalmente por dois tapeceiros que ultrapassando a fase da tapeçaria convencional, propõe desenvolver nesta oportunidade um trabalho que saia das redes e vá às ruas. Cada peça isoladamente adquire uma nova dimensão: a da utilidade. Algumas delas já foram usadas como indumentária e acessórios de figurino de espetáculos. Por isso amplia-se também o acesso ao público à obra já que a sua concepção propicía uma apreciação e aproximação às gentes, saída às ruas e subida aos palcos".
"Mercado? 'Tou tirando leite das pedras, meu irmão. A gente faz o que pode. O artista brasileiro tem que ser artista de todo jeito. É claro que eu vendo meus trabalhos! Mas acontece que aplico um mínimo de 30 dias em cada um. E às vezes fico com ele um ano... Não são trabalhos que se pode vender muito barato. Além do que há uma grande instabilidade no mercado".
E é por esse motivo que Cláudio está estudando uma proposta da Casa das Américas, em Cuba, p'ra poder lá lecionar e trabalhar com mais tranquilidade. Acredita, pelas informações que tem, que poderá se aplicar mais em suas pesquisas. Aqui, por enquanto, tem que desenvolver outras atividades paralelas. Posar para fotografias de publicidade é uma delas.
"Já posei até nú. Só não fui convidado para fazer strip-tease em boite. Não sei se não aceitaria. Acho que poderia trabalhar até assalariado, como deverá ser o programa em Cuba. Mas é necessário um mínimo de paz pra gente produzir bem. Ter um amparo direto pra poder deixar de trabalhar só p'ra elite. Popularizar mais a arte".
Cláudio brinca enquanto fala agitadamente. Otimista, discorre sobre sua vida num papo que poderá ser interminável. Uma pessoa cativante e que já tem dezenas de amigos em Brasília sem ter nunca vindo aqui antes. É muito dificil frequentar o artista sem conhecer e ser conquistado pela pessoa, pelo amigo. Uma constante agitação que contrasta com a placidez da obra. Ela se apresenta em mandalas tecidos, talvez o único caso de que se tem notícia.
Os mandalas são originalmente, esquemas lineares de côres simbólicas que reproduzem o universo cosmogênico indiano. Diagramas compostos por círculos e quadrados concêntricos, eles dão uma peculiar imagem do mundo servindo como instrumento de meditação para budistas e tantristas. É aí que se pode descobrir a verdadeira identidade do artista. Exteriormente agitado ele põe em sua obra a própria necessidade em se harmonizar com o mundo que o cerca. Uma proposta de conquistar e de estar inconformado com o ser do mundo de hoje. Uma preocupação com a cuca, a magia, os novos rumos do homem.
"Os mandalas não são propositais. Depois de muito tempo tecendo é que descobri que os fazia. Aí comecei a transar e ler muito sobre eles e sobre os estudos de Carl Jung a respeito. Ele diz que, mesmo sem conhecer e nem ter nada a ver com a cultura oriental, os doentes mentais europeus despejavam as cargas de suas cabeças em mandalas. Desenhavam, se concentravam e meditavam em cima. Propunham para si coisas coisas que os ditos 'normais' não podiam entender".
"Pra mim é a mesma coisa. 'Tou com 2 anos de análise e sou meio maluco, tenho minhas neuras. Descobri os mandalas instintivamente e agora tento aperfeiçoar tecnicamente, mas eles nasceram foi do instinto".
Loucura, magia. Sobretudo de filigranas tanto psíquicas quanto artesanais formam o acervo e a obra riquíssima de Cláudio Medeiros. Uma placidez que resolve cabeças sem deixar de ser uma obra de maior valor e que o classifica entre os mestres da tapeçaria contemporânea. A simplicidade não esconde o domínio técnico e a perfeição.